sexta-feira, 25 de julho de 2008

História de uma gata

No meu caminhar, encontro-me desperta enquanto todos dormem, ou tentam, pelo menos. Insones somos nós, gatos e poetas. Ao olhar ao redor, deparo-me com cenas comuns, rua vazia, telhado vazio, casas aparentemente vazias, por vezes tão vazias quanto os que as habitam. Mas meu passeio está apenas começando.
O doce vento da madrugada vem acariciar-me o pêlo e fazer cócegas em meu bigode. Se disser que não gosto disso é mentira. Sinto-me amada, recebendo os carinhos de um dono que não possuo.
Engraçado como as coisas mudam sem as pessoas por perto. Elas, sempre tão agitadas e frenéticas, vivendo como em um ciclo. Deve ser chato ser humano. Nascer, crescer, às vezes se reproduzir e, inevitavelmente, morrer. Ah, tantos deles se resumem a isso. Chego a ter dó.
Daqui de cima consigo ver o que eles mesmos não enxergam. Parecem não se importar com o fato de a vida, tão breve, lhes escorrer pelas mãos. E eles insistem em jogar fora o tempo como quem joga fora algo banal como uma latinha de refrigerante. Mal sabem o quanto cada segundo lhes é valioso. Insistem em pensar que nada se perde, e que o mundo é e sempre será infinito. Estragam o quanto podem, sem perceber o mal que aquilo lhes faz.
Sonham tanto, realizam tão pouco. Claro, não me refiro a todos eles. Não se pode julgar o todo apenas pela maior parte (embora ela - por ser maioria - faça com que aspectos da minoria não sejam levados em consideração).
Um rato passa por mim furtivamente. Droga, não consegui pegá-lo. Ah, quantas mais noites insones terei que suportar? As luzes da cidade me trazem aconchego. Gosto de observá-las, sinto como se elas me iluminassem até o mais profundo de mim, elas me trazem paz.
Sinto o início da manhã chegar. Poetas, cronistas, bêbados, trabalhadores, desocupados e afins, gatos, insones do mundo, sintam em seus rostos o leve toque da luz matinal. Creio que seja hora de dormir. Ou tentar, ao menos.




Raios! Eu havia cochilado. Observo o pequeno relógio tiquetaqueando sobre a mesinha de cabeceira: seis horas. E vejo por aqui vestígios daquela gata preta que sempre me visita em busca de restos de comida. Ela veio, hoje.

quarta-feira, 23 de julho de 2008

(Sem) rumo.

Porque quando ela caminhava, parecia que o mundo inteiro não passava de mera formalidade. O vento nos cabelos, o sol fazendo seu rosto corar, os pés definindo um rumo que poderia não fazer sentido algum.
Pensamentos soltos borboleteavam por sua mente, e quanto menos complexos, melhor. Ah, como era doce viver.

terça-feira, 15 de julho de 2008

Tudo que pode dar errado

Eu estava aqui sem fazer nada, assim, pra variar um pouquinho só. E cá me pego pensando: muitas coisas podem dar errado no dia que eu for fazer minha tão esperada prova de vestibular.
Eu sei, ela é só dia 23 de novembro, mas certas coisas ocupam uma mente desocupada (e isso ocupou a minha, foi inevitável, quando eu vi já estava aqui com todos os possíveis problemas na cabeça).
Primeiro: o despertar. Bom, eu sou bem tranqüila para certas coisas, mas não sei se no dia conseguirei manter a calma. Tenho medo de não acordar na hora certa, me atrasar e perder a prova (já tive até a visão de um portão se fechando nos últimos segundos, enquanto eu, naquela corrida espetacular, fico por alguns milímetros do lado de fora). Tenho um sono muito pesado. Acho que vou colocar todos os despertadores da casa (e comprar alguns mais, só pra garantir) para despertarem umas duas horas antes do necessário, para caso eu caia na tentação dos 'dez minutinhos a mais' eu não perca tanto. Vou armar um dispositivo que vai jogar água em mim. Vou mandar minha mãe gritar, minha irmã gritar, meu pai gritar, meus vizinhos gritarem. Em último caso, vou contratar uma pessoa pra me bater caso eu não queira acordar.
E há também a possibilidade de eu não conseguir dormir e estar muito mal no dia da prova, cochilando por cima da mesma. Não, não, não, isso não!
O café da manhã é outra coisa que me apavora. Até isso? É, até isso. Eu não costumo comer de manhã, a menos em momentos tensos. E esse, com certeza, vai ser um momento tenso. Vai que eu como algo que me faz mal? Visitas freqüentes ao banheiro durante a prova são algo potencialmente problemático. Isso me faz lembrar outra coisa: o jantar da noite anterior. Eu não quero perder a prova por não conseguir deixar o banheiro da minha casa. Nada de estripulias, então!
Mais uma coisa: quem vai me deixar. Bem, já falei com meus pais (sério, falei mesmo) que já escolhi qual dos dois me levará. Foi uma decisão não muito difícil, assumo. Espero que esteja tudo 'nos conformes' no dia com meus escolhido. E com o carro. Vai que o carro quebra antes de sair de casa? Ou pior, quebra no meio do caminho? É para isso que vai servir a minha ida adiantada em, pelo menos, meia hora do que o horário que deveria ser. Não admito falhas.
Chegando lá, superando todas as calçadas, buraços, portões, pessoas, enfim, na hora da prova. E se minha caneta falhar? Bom, claro que levarei mais de uma. Mas e se todas elas falharem? Não sou exagerada, só acho que se algo pode dar errado, temos que considerar essa possibilidade. Sem contar as lapiseiras que insistem em me odiar e quebrar nos piores momentos. E os lápis sempre me abandonam. As borrachas saltam das minhas mãos. Não consigo fazer nada sem uma garrafa com água, e tenho medo de molhar minha prova, visto que sou muito desastrada. Ai, céus, eu não achava que fosse tão complicado.
Acordar, comer, ir até lá, chegar, me acalmar, levar vinte canetas, quinze lapiseiras, sete lápis e três borrachas. Ah, e quatro garrafas com água (mas sem derramar, por favor!).
É melhor eu ir fazendo a listinha pra não esquecer de nada...

segunda-feira, 14 de julho de 2008

Laço

O som dos sapatos evidenciavam seu nervosismo. Ela sabia que não estava conseguindo conter as próprias ações.
Aquele tamborilar de dedos, como quem espera algo que não sabe se deve vir, como quem espera algo que não sabe o que é, que quer que algo ocorra, mesmo sem ter certeza do que se trata.
Já havia consultado o pequenino relógio de pulso dourado, gostava tanto dele, havia recebido das mãos da avó, ela o havia comprado na mais bela vigem que fizera, ah, minha filha, foi tão lindo...
Era a única lembrança que possuía do seu passado, era a única que realmente valia algo, ela achava que sim.
Sentada ali, achava que a vida não passava de uma efemeridade que por vezes não valia à pena ser vivida. Apenas apreciar viverem era sua presente ocupação, e merecia um prêmio, pois até agora não havia pensado em qualquer comentário ferino como os que fazia com freqüência. Estava aprendendo a ser mais reservada.
Essa foi uma das lições que aprendera a duras penas, mas desse passado não havia mais nada nela, ela era apenas o hoje e o que viesse depois. O que fora, agora, não mais importava, pois quem muda, muda. Resquícios da existência passada eram inadmissíveis, e não queria torturar-se ainda mais.
Tinha uma angústia no peito, e a sensação de que um buraquinho estava se formando logo abaixo do salto daquele que já fora seu mais belo scarpin, e que hoje era o único.
Parecia não chegar nunca, os dedos já estavam roxos de frio, e as unhas cobertas por uma camada descascada de esmalte vermelho, que cada vez estava mais desgastada pelo tamborilar frenético, ou até mesmo pelo descontrole momentâneo, quando a mão era levada à boca em um movimento impulsivo.
Cinco e trinta e cinco. Ela achava que de nada mais adiantava esperar, pra quê, se ele não vem.
O scarpin, de repente, parou. Os dedos agora vacilavam ao tentar tamborilar, descrevendo um movimento livre, solto pelo ar.
Os olhos dela eram doces como os de uma criança, úmidos pelas lágrimas de alegria. Ele estava ali.
Primeiro, não quis revelar-se, mas ela conhecia os sinais de sua aproximação. Já sentia seu toque que a fazia corar.
Então, ele a possuiu, iluminou seu rosto, trouxe calor ao seu corpo. E os dois tornaram-se um só.

quarta-feira, 9 de julho de 2008

Pipas

Engolia-o com ferocidade. Sentia-se sufocado com as verdades da vida, querendo correr daquilo que insiste em perseguí-lo, memórias de coisas que ainda não viveu e que jamais quer viver.
Percebe que não é mais menino, menino que corre despreocupado atrás de motivos para viver, que corre atrás de pipas, simplesmente por pura diversão, vendo-os deliciosamente escorrer por entre meus dedos, aquele papel colorido pelo qual os raios de sol pareciam ainda mais belos, e o suor salgado da doce vida escorria pelo seu rosto. A terra entre seus dedos o parecia impulsionar para o ar, sentia-se leve, flutuar era apenas uma questão de tempo.
Ah, pipas que hoje insiste em perseguir, mas elas fogem não mais com a fragilidade, mas sim com a velocidade do inalcançável, a maldade do inatingível, corre atrás das próprias pipas, aquelas que faz mas manda embora. Não possui mas a vivacidade do menino que outrora fora, parece ter os pés acorrentados ao chão duro.
Tudo parecia ao alcance das mãos quando era menino, magro, a leveza do corpo refletindo a leveza da própria alma. Tão leve, tudo parecia tão simples, como um sonho sem fim, como uma realidade mutável e facilmente selecionável. Queria ser, podia ser, seria.
Era? Não. Pareceu abandonar tudo aquilo, toda aquela alegria sabe-se lá quando, sabia apenas que não a tinha mais. Olhava o mundo admirado com a própria incapacidade. Os dias cada vez mais vazios, sem aquela cor que outrora tivera.
Sentia o suor amargo.

Corria, corria, corria, aquelas pipas, voltem!, dizia, queria alcançá-las, queria possuí-las, não!, era como se a chance de ser feliz fosse embora com o papel colorido. Ela, de fato, ia embora. Chorava, chorava, menino levado a chorar sozinho, contrariando ao que o pai sempre dizia. Lágrimas salgadas, o peito amargurado pelo que não conseguira atingir, e zombavam dele, eram cruéis provas da fraqueza, mostrando o quão imprestável era. Correntes pesadas em seus pés, aquele barulho da incapacidade, o prendiam, o torturavam, o machucavam, não era mais um menino, era um homem, mas a alma de menino brotara em seu peito, em seu peito agora estava em conflito com o ceticismo da idade que agora possuía. Sentia os pés livres, mas por que não consegua alcançá-las? As correntes não estavam mas em seus pés, mas sim em seu coração, esse coração, coração que aos poucos morria, definhava, precisava daquele sentido que havia perdido. Doce fragilidade e inocência, pureza e sonho que perdera, nunca mais vindo a recuperar. Como doía, tudo aquilo, aquela trágica nostalgia, não, queria mudar, não podia, não assim, não queria viver assim, não mais.
Grito.

O suor o banhava. Abriu abruptamente os olhos. Fitou o teto. Já passou, já passou. Só que agora não tinha mais o quarto dos pais para ir.

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Qual o quê

Saber que tudo passa é necessário, mas às vezes é extremamente difícil. Digo, coisas que eu pensava serem duradouras (eternas não, assim é demais, já), hoje são meio (ou totalmente) estranhas a mim. Antes, eu parecia ter domínio quase que completo sobre elas, mas por puro acaso aquilo que parecia tão lindo se desfez, como aquele instável castelo de cartas.
Penso em às vezes esquecer, deixar para trás, deixar morrer. Penso não valer mais tanto o meu esforço, se não quer voltar, não volte. Aquela graça de antes se esvaiu, será? Mas não sei por qual motivo insisto em não deixar morrer. Parece que se ainda insisto, se ainda quero, é porque vale a pena.
Tudo deveria ser mais fácil, realmente deveria. Voltar ao ponto em que queria e dali prosseguir sem deixar que nada desfizesse a frágil estrutura. Manter aqueles mesmos sorrisos, aquelas mesmas alegrias, aqueles mesmos segredos, aquela mesma amizade, aquele mesmo jeito de ser, sempre.
Idiota me sinto por pensar assim. Mas deixa estar.

sábado, 5 de julho de 2008

Inesperado encontro

As crianças corriam pelo quintal, algumas faziam castelos de terra, terra batida, barro vermelho por ali, Maria, não coma seu bolinho de areia! Ela via tudo passar, lembrava dos tempos dela, bons tempos.
O pomar, cheinho de frutas, algumas pedindo para serem retiradas, como se implorassem pelo roubo, e ela subia, subia como a pequena menina que passava correndo por ela, nese momento, ah, aquela saudade do tempo bom.
Via tudo aquilo construído, aquilo que agora era parte dela, a família no grande sítio, e era ela, matriarca, elo daquela grande união. Via tudo com aqueles olhos de menina fascinada, a idade dos olhos, ah, não era a idade que os ossos acusavam, já não andava como antes.
Mas estava só, universo aos seu redor, e ela só. Pensava nas jabuticabas, apenas não tivera uma Emília que a levasse com pó de pirlimpimpim, mas tivera as jabuticabas.
Hoje, naqueles olhos cansados, naquelas rugas, formava-se um sorriso. O pequenino vinha ao seu redor, dizendo que a amava, ela também o amava.
Com ela falavam, ela respondia com um aceno leve de cabeça, concordando com os absurdos desconhecidos que a ela eram ditos, cada palavra correndo de seus ouvidos, ou seriam seus ouvidos que corriam das palavras?
O pensamento, distante, encontrando-se consigo mesma, com ela no passado, aquela doce nostalgia, lembrando que tivera uma galinha chamada Felicidade, mas Felicidade havia morrido, ah, como chorou. Parecia que Felicidade era única, insubstituível, mas com o passar dos anos passou a ver que felicidade havia em outros lugares.
Lembrava da doce voz da mãe que embalava seus sonhos com cantigas que contavam lendas de sereias.
Adorava o céu, a fascinava sempre. Aprendera com o avô a respeitar as estrelas, a querê-las bem, a amá-las. Tão fascinada pelo seu que fizera o próprio céu na terra, através do brilho dos olhos de outrem.
Mas apesar da doce vida, havia o maior sonho em seu coração que permanecia em não se realizar: voar. Queria conhecer as alturas, voar para longe, a mente voava, ela não, não se sentia leve o suficiente.
Mas hoje, estranhamente, sentia-se leve. Voaria para longe? Sim, haveria de ser hoje, sentia algo diferente, as cenas, tudo aquilo, voaria.
O vento a soprou para tão distantes lugares, lembrava dos pormenores de uma vida que valera a pena, e sentindo-se feliz encontrou-se consigo mesma.
Fechou os olhos e dormiu.

sexta-feira, 4 de julho de 2008

De amor.

Odeio gatos, comentou com a esposa ao ver um felino em um daqueles programas que fazem com que as palavras trocadas durante o jantar fossem poucas.
Depois, repousou a cabeça no travesseiro e dormiu.

Caminhava apressado, as ruas abarrotadas do centro da cidade o obrigavam a isso - ao menos assim ele pensava. Mal sabia que assim caminhava para compensar o ritmo descompassado do próprio coração - que coração?
No seu não pensar cotidiano, de repente, foi surpreendido: parecia estar sendo seguido, sentia isso, sentia estar recebendo mais atenção do que realmente deveria. Foi então que o viu.
Olhos profundamente tristes, em tom de constante e inquietante súplica. Sentiu a repulsa tomar conta dele, o que atraía aquele animal, meu Deus? Animal esse que rompia o frágil equilíbrio entre o amor recebido e o amor cedido.
Sempre amara e fora amado. Amava a quem o amava, era só. Nunca havia amado alguém sem ter sido amado em troca. E nunca antes havia recebido amor gratuitamente. Sentia-se desesperado.
O gato, magro, sujo, dava a ele um amor nunca antes dado. Sentia não estar apenas sendo observado ou seguido pelo gato, mas podia sentir o amor que brotava espontaneamente dos olhos da pequena criatura. Fora escolhido para ser amado.
De repente, apressou-se. Caminhava mais rápido, mas ainda assim podia ouvir os leves passos de um corpo frágil. Sentia aquele olhar, parecia estar possuído pelas súplicas desesperadas.
Tentou, em vão, livrar-se daquele amor, daquele sentimento irritantemente puro, simples.
Saciou a fome e a sede do gato, mas nada conseguia saciar o desejo de amar do pequeno animal. Como tudo "é o que tem de acontecer", aquele felino parecia ser para amá-lo.
Olhava o bichano como se tal constatação o ferisse, e feria. Estava sentindo o peso de ser amado. Mas amor com amor não se paga.
Levou-o consigo, para pagar-lhe o amor. Mesmo com todos os protestos da esposa, o fez um filho, mas um filho que não amava, a quem apenas pagava o amor recebido com comida, cuidados, mas nunca amor.
Com o passar do tempo, foi descobrindo as peculiaridades do bichano e deixando-se descobrir por ele. Já acordava sentindo o toque macio de seus pêlos sob os pés, em um ritual cumprido rigorosamente.
Porém, em uma manhã, não o sentiu. Procurou-o, aflito, mas não conseguiu entontrá-lo. Correu, desesperado, por todo o apartamento, onde, meu Deus, onde? Foi apressado até o local onde pela primeira vez se sentira amado, e lá o viu. O corpo frio, aquilo que era apenas o vazio do que um dia o havia amado.
E o frágil equilíbrio estava mais uma vez desfeito, pois agora era ele quem amava gratuitamente.