sábado, 7 de novembro de 2009

Outono.

Sempre souberam que ela diferente. Frente às outras crianças, seu semblante sereno a fazia parecer mais velha, como alguém cujo corpo não acompanhou o ritmo do pensamento, ela que sabia que ser criança era uma prisão que teria que suportar.
Um dia, ao caminhar distraída, pensando na injustiça que é ter nove anos e opiniões reprimidas e julgamentos sufocados, viu algo tão belo que seus profundos olhos castanhos, talvez pela primeira vez na vida, brilharam como olhos de criança fascinada.
Aquilo era, talvez, a coisa mais linda que já havia visto. Olhar sério, nariz adunco, profundas olheiras, mas a elegância de um príncipe. Seu príncipe, assim o chamou. A seriedade dele parecia confrontá-la, ela que sempre era mais séria do que todos que a rodeavam. Sentiu em seu corpinho miúdo pulsações que não sabia explicar. Era como se o desejo de tê-lo a mantivesse viva, como se houvesse, enfim, encontrado um pouco de sentido na vida que levava.
Ele ali, sentado, observando os transeuntes, não a percebeu. Devia ser, para ele, apenas mais uma garotinha entre as folhas amareladas. Isso a feria, mas, tudo bem, era uma dor suportável. Enquanto pudesse olhá-lo e vê-lo, tudo seria suportável.
Uma voz a chamou, não, ela não queria ir, teve que ir, súplica alguma foi suficiente para amansar o olhar feroz da mãe, que a comandava.
Sozinha, percebeu que vê-lo uma vez, apenas, não era suficiente. Seu magro corpo tremia ao pensar que aquela teria sido a primeira e única chance que tivera de contemplar seu amado. Adormeceu entre lágrimas e soluços.
No dia seguinte, atônita, buscou naquela tarde seu sentido e eis que o viu: sério, centrado, elegante e seu. Parecia cumprir o mesmo ritual todos os dias: sentar naquele banco da praça e contemplar cada sutileza que a vida poderia trazer-lhe.
Dia após dia, ela se dava o direito de observá-lo. Era como se um prazer a invadisse de uma forma única, como se todo aquele descontentamento em ser criança não houvesse, como se tivesse conseguido ir além.
Com o passar do tempo, naquele rosto de homem sério começaram a surgir marcas da vida, acompanhando as olheiras que ele sempre levava consigo. E o corpo de menina passou a corpo de moça.
Moça essa que se desesperava ao pensar que aquilo pudesse chegar ao fim. E se, por alguma obra do destino, um dia ele não viesse? Tinha que imortalizá-lo de alguma forma. Não permitiria que dele restassem apenas frágeis lembranças, as quais poderiam ser levadas por qualquer leve sopro de esquecimento.
Pôs-se a tentar eternizá-lo no branco de uma tela, tal qual a tela que eram seus olhos que refletiam a imagem daquele homem todos os dias, até aquele em que ele foi para nunca mais voltar, ela sabia, sabia que aquela era a última vez que o veria, que aquele último suspiro dado por ele antes de ir para casa era um suspiro de adeus. Ela, porém, nada disse, sequer um adeus, para não desfazer o encanto que, há anos, os envolvia, uma aura de segredo e silêncio.
Passou a querer, então, a imagem perfeita daquele que era sua razão de existir. Não saía mais, dedicando-se inteiramente à imagem dele, imagem essa que deveria ser tão plena quanto ele fora um dia.
E as horas viraram dias; os dias, meses; os meses, anos. E a moça virou mulher, mulher tão dedicada ao seu propósito que nem a fome, a sede ou a ameaça da loucura pareciam poder afetá-la.
Em uma noite, então, sentiu que havia terminado. Sim, ali estava ele, tão sério, com aquele olhar que um dia encantou a menina e que hoje encantava a mulher. Estava ali, tão perto que podia tocá-lo, tão real que podia sentí-lo.
Então, depois de tanto tempo, ela conseguiu dizer, apenas:
- Me leve.
E os dois saíram a caminhar sobre folhas amareladas.