sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Despedida.

Estava na hora, não havia mais porque adiar o inadiável. Vestiu-se e partiu. Ia com aquela certeza incerta que só os decididamente confusos trazem consigo, sabia exatamente o que fazer. Nas mãos, uma gaiola; no peito, sentimentos mil que transbordavam e pareciam querer sair por seus olhos. Caminhava lentamente, como que fazendo sua despedida sem dizer uma palavra. O pássaro a olhava curioso, mas, ao mesmo tempo, parecia estar contente e orgulhoso pela decisão que ela estava tomando. Os passos faziam um barulho macio na areia batida, nas folhas caídas, e ela continuava sua caminhada sem pressa, aproveitando os últimos momentos que restavam daquela companhia. Não sabia onde estava indo, mas sabia que o a mente e o coração saberiam ao chegar. O cheiro de chuva recém caída invadia seus pulmões, trazendo uma sensação prazerosa.
O pássaro aguardava lentamente, balançando naquela gaiola que havia sido por algum tempo seu lar, admirando aquela que fora sua companheira e estranhando o porquê de algumas lágrimas, tendo em vista que chorar, para ele, era algo estranho. Para consolar aquela que tanto amava, pôs-se a cantar a suave melodia que embalara tantos momentos que ambos haviam vivido juntos, para acalmar o coração de ambos.
Havia chegado a hora. Aquele era o lugar. Um campo, uma colina à frente, árvores sussurrando segredos aos seus ouvidos. O pequeno companheiro agora estava calado. Lembranças percorriam sua mente: risos, lágrimas, realizações, decepções, conquistas... muita vida, enfim. Abriu a portinha da gaiola. O pássaro, para quem voar nunca havia sido estranho, hesitou por um momento. Sentiu o pesar nos olhos da dona, mas, aos poucos, deixou-se ir, sentindo como despedida o toque macio de dedos em sua plumagem fofa. Voou para longe, sentindo a liberdade entre as asas. Entoou o canto mais lindo que ela já havia ouvido.
Após algum tempo, ela decidiu que era hora de partir. Mais um pássaro ela havia libertado, sabia que era assim que deveria ser: as coisas acabam para que outras possam começar. O pássaro ganhava os céus, a garota ganhava paz e a certeza de que mais pássaros viriam. Sua gaiola continuaria aberta para o próximo que se instalaria e passaria com ela mais um tempo, até que fosse hora de libertá-lo, também.
Nas asas e no coração do pássaro, ele e sua amiga voavam livres.

sábado, 11 de dezembro de 2010

Sobre mormaços e sorvetes.

Adoro esse cheirinho, apesar da chuva ter sido maior mentira, só pra eu ficar na ilusão. É tão ruim coisa assim, né? Que alegra um pedacinho mas logo vai embora, deixa só o gostinho. Que nem sorvete: se você não aproveitar logo, ele derrete. Passa, que nem essa chuvinha. Tem que aproveitar pra ouvir enquanto dá... Mas, assim como no sorvete resta o caldinho, da chuvinha resta o mormaço.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Tu vens

Não preciso que anjos sussurrem no meu ouvido: sei que vens. Nem brumas, nem sinos, nem varais, nem sóis. Não preciso escutar teus sinais: posso senti-los. Não precisa chegar em uma manhã de domingo, e sei que não chegarás assim. Chegarás numa tarde quente de segunda-feira, entre compromissos e sorrisos e sons e vida, vida pulsando ao redor da tua chegada. Não ouço: sei. Sinto.

domingo, 10 de outubro de 2010

Últimas palavras

Daí ele olhou pra ela e perguntou assim, direto mesmo:
- Você se arrepende de alguma coisa?
- Só me arrependo do que não pensei em fazer. O que eu fiz está feito, o que eu não fiz passou. Ponto.
E mergulhou.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Nácar

As ondas iam, vinham, iam, vinham, iam, vinham, singelas, sorrateiras, simples, silenciosas, sussurrando segredos. Os pés marcavam a areia e a água apagava as pegadas recém deixadas - pudessem os erros serem apagados como as pegadas, que bom seria. Bom, fácil. Observava a imensidão de um céu azul cor de sonho, aquele azul limpo como os pensamentos de alguém livre. Além da maciez da areia fofa sob seus pés, sentia pequenos pontos de rigidez das pequenas conchas.
Os olhos agora estavam fixos naqueles pequenos pedaços que já foram casa, abrigo, proteção, mas agora divertiam crianças que buscam tesouros enviados por Netuno e pessoas que procuram distração. Sentou e começou a reunir, uma a uma, as conchas de que mais gostava. Talvez a vida inteira não passasse disso: escolher as conchas que mais se gosta. Do tipo de bolo aos amores. Ir procurando conchas que parecem interessantes: grandes, pequenas, brilhantes, redondas, lisas, coloridas, e tendo cuidado para ver antes que o mar as leve embora ou as enterre. Talvez as coisas sejam assim mesmo, talvez a gente vá pegando conchas até elas não caberem mais em nossas mãos e, um dia, alguma inevitavelmente cai e o mar leva. Ou enterra, quem sabe, e talvez nós voltemos a achar aquela conchinha novamente.
Pode ser que alguma concha em especial nos faça feliz. Pode ser que, por alguma distração, deixemos alguma concha imprescindível passar. Pode ser que tentemos pegar tantas conchas com as mãos que elas acabem sendo demais para carregar e nós tenhamos que deixar algumas para trás. Pensou em quantas conchas teria deixado cair, consciente ou inconscientemente. Será que havia escolhido as conchas certas para levar consigo? Será que o mar havia mesmo levado aquela concha ou ela estaria enterrada debaixo de seus pés, esperando pelo momento certo de ser redescoberta?
E o mar ia e vinha, ia e vinha, ia e vinha, trazendo e levando lembranças, pessoas, cores e sons de uma vida inteira de busca pelas conchas perfeitas.

domingo, 15 de agosto de 2010

Vertiginosamente

Andava sempre assim: olhos fixos no rumo que tomava, expressão de quem vive plenamente e de que não liga muito para essas banalidades todas. Age como se quisesse esconder segredos que nem possui, buscando definir sentimentos que não sente, o fazendo da maneira mais triste possível. Triste não: ausente. Como se tudo fosse simplesmente infeliz, mas como se nada daquilo tivesse condições de deixar uma marca sequer. Tratava tudo com a maior indiferença possível, mesmo que, intimamente, não conseguisse ser indiferente. Como se cada uma daquelas coisas friamente desprezadas fizesse um pequeno corte, e que cada vez mais o número de cortes aumentasse e aumentasse e aumentasse indefinidamente. Como se viver fosse apenas uma grande vertigem, na qual se anda sem saber onde e como será o passo seguinte, na qual apenas o fim é certo. O meio é recheado de aventuras e desventuras que mente nenhuma é capaz de desvendar.
Consultava o relógio freneticamente, era um hábito seu, o único que conseguia denunciar toda a sua insegurança e que estampava em sua testa que não era indiferente. O ato de consultar nervosamente os ponteiros de cinco em cinco minutos denunciava que buscava sempre conter o tempo, como que por meio da noção das horas pudesse vigiar aquele que é o mais cruel inimigo dos que vivem, aquele que, inevitavelmente, manipula e decide tudo.
No seu andar alheio a tudo, pensava que a vida, o tempo, as coisas são, por vezes, como bolhas de sabão: a beleza deve ser apreciada, apreciada sem tocar, sem muita precipitação, pois um toque pode fazer com que tudo acabe mais rápido do que o que deveria. Tudo tem um fim, tudo. Seja efêmero ou não, tudo um dia acaba. Mas algum ato impulsivo, alguma falta de controle, pode fazer com que tudo acabe subitamente. Como no estourar de uma bolha de sabão.
Vivia como se fosse protagonista de uma grande história, a sua história. E era, de fato. Mas, por vezes, agia como se os demais também pensassem assim. Como se observassem seus passos, seu jeito, suas manias, suas expressões e tudo que compunha aquilo que era. Mas depois vinha a frustração de saber que não era assim: que o mundo era egoísta e que, por mais que algumas vezes fosse alvo da observação de alguém (provavelmente algum desocupado), não era assim o tempo todo. Não era como esperava, não era como queria.
Cabeça recostada no travesseiro, sinal de pensamentos cada vez mais soltos, mais altos. Voava em um céu particular de devaneios, mergulhava em mares de angústias e dúvidas, tendando escavar poços mais dentro de si, tentando achar um pouquinho da essência do que era. Entorpecia-se de sonhos, embriagava-se de vida, numa vertigem sem fim.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Universo particular

A menina olhava pro céu, com aqueles olhos fascinados de quem descobre a miudeza que se pode ser quando se comparada à imensidão que brilha diante de seus olhos. Tantas estrelas, tantos mundos, supernovas, buracos-negros, sistemas binários, nebulosas, cometas, meteoritos, planetas, poeira estelar, sóis e tudo mais. Nomes que ela aprendeu na escola, ou que sua curiosidade a permitiu conhecer.
A menina que carregava um universo dentro de si, cheio de medo, incerteza, alegria, insegurança, plenitude, prazer, dúvida, amor, amizade, tudo aquilo que parecia querer explodir dentro dela e fazer daquela menina uma fonte de luz inesgotável, como na explosão de uma estrela que não cabe mais dentro de si.
E diante daquele mundo tão grande, mas que não era nem um milésimo dos muitos mundos que existem, existiram ou que viriam a existir, a menina libertava as próprias estrelas, que saltavam dos olhos e buscavam abrigo próximo ao chão em vez de voar, tudo isso por conta de uma lei da qual, inevitavelmente, elas não conseguiam escapar.
Apesar de se sentir tão pequena, a menina nunca fora tão grande. Grande ao reconhecer que não era total, que não era gigante, mas que trazia em si uma alma que o era. Grande por reconhecer o quão pequena era, e, por isso, sabia do seu valor. Porque, por menor que parecesse aos olhos daquele universo assustador que parecia querer engolí-la com soa boca de escuridão e sombras, a menina sabia que era singular, e que sem ela o universo de bilhões de estrelas não seria o mesmo, seria um pouco mais vazio, um pouco menos brilhante, um pouco menos intenso, um pouco menos vivo, um pouco menos universo, de fato.
A menina parecia sentir a poeira de estrelas que pairava sobre ela e que pousava delicada e quase que imperceptivelmente sobre seus cabelos, sobre sua face, juntando-se às estrelas que saíam dos olhos da menina, que agora estendia as mãos tentando alcançar um pouco do que levitava sobre ela.
E então, ela percebeu que aquilo tudo era parte de um só ser, um ser que reunia universos grandes e pequenos, e que cada um, com sua singularidade e individualidade, era peça fundamental do quebra-cabeças chamado vida. Vida essa que a menina, agora tomada pelo próprio universo, nunca mais iria enxergar da mesma forma.

domingo, 27 de junho de 2010

Ele.

Só de olhar já conseguia ver toda a sua profundidade. Do fundo daqueles olhos que pareciam transbordar feito o mar não conseguia enxergar nada além daquela alma nua. Ah, aqueles olhos que pareciam gritar, como se a alma gritasse por liberdade, ele que sempre fora mais do que o mundo todo, mais do que aqueles cabeça, tronco e membros lhe permitiam ser. Contemplativo, poucas palavras, muito a dizer, mas ninguém para ouvir. Os que escutavam, apenas, o julgavam louco. Ele se julgava louco, louco por adentrar no poço mais profundo de si mesmo, por escavar no fundo do peito aquelas mágoas, aquelas dores, aqueles sorrisos, aqueles beijos, aquilo tudo que ele chamava de vida, vida que parecia não caber em quatro letras, apenas, que nem quatro décadas ou quatro séculos ou milênios, quem sabe, porque esse tempo não é todo tempo do mundo para quem carrega em si o peso de um universo.
Não há tempo capaz de comportar tamanhos pensamentos, pensamentos estes que lhe eram frequentes, mas não os pensamentos de todo dia, não, pensamentos mais profundos, aqueles que assustam muitos dos que ousam rondar por perto. Porque são como um poço: alguns não se atrevem sequer a chegar perto e já pedem para que outros não o façam - pobres destes, jamais puderam escolher por si mesmos se queriam chegar ao poço; outros chegam perto, experimentando mililitros de ousadia, aquela ousadia contida de quem faz um pouco do que parece errado apenas para, mais tarde, poder sentir um pouco daquela adrenalina contida; outros, ah, os outros, são aqueles que mergulham de cabeça no poço, ou que caem nele, não se sabe ao certo como, mas o fato é que vão tão fundo tão fundo tão fundo que aquela água de sabe-se lá o que os molha, os banha, os afoga, os afaga, os permite ir rumo ao desconhecido de dentro de cada um deles.
Estes, os que mergulham verdadeiramente, são raros. Claros e límpidos como as águas do poço em que se encontram submersos. E ele era um desses, ah, reconhecia isso pelos olhos, pelo brilho de mil sóis que eles exibiam para quem quisesse ver, embora quase ninguém quisesse. Mas eu quis, eu quis e desejei ardentemente que aquele brilho me visse, mas parece que olhos tão brilhantes assim não têm tempo de olhar: apenas vêem, apenas sentem, porque sentir é difícil e consome muito. E ele sabia sentir.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Nós

E a bagunça do nosso quarto, da nossa casa, bagunçados como seus cabelos e como os nossos sentimentos. Olhos, mãos, bocas e nós, juntos, presos, sós. A vida toda pela frente e o que importa é que nossas mãos continuem unidas, e seu sorriso no meu sorriso, como se o sol nascesse todos os dias apenas para iluminar os nossos momentos, os nossos caminhos, os nossos sonhos, a nossa vida.

segunda-feira, 31 de maio de 2010

Ao final das contas

Distraída, caminhava simplesmente pela trivialidade que era caminhar, muitos destinos para a mente e nenhum para os pés. Eis que entre pessoas, sons, luzes, cores e vida, a viu. Perfeita em sua simplicidade. Única, bela, brilhante e só. Parou. Não conseguiria prosseguir sem levá-la consigo, porque nela se concentrava toda a perfeição do ser: ela era o que era, e era aquele momento, apenas.
Caminhou até ela, em passos tímidos, como quem se aproxima do desconhecido sem medo, mas temendo desajustar algum equilíbrio existente. Olhou-a por um tempo e pegou-a, enfim, do chão. Segurou-a firmemente entre os dedos: era sua. Custara a acreditar que a possuía. Todo aquele brilho aprisionado entre seus dedos. Enfim, sentiu-se dona daquela pequenina conta que continha o brilho de mil estrelas.
Levou-a consigo, caminhando apressada, atônita, temendo que alguém, de surpresa, a tirasse de suas mãos. Ao chegar em casa, buscou o lugar ideal para guardá-la, mas nada ali parecia capaz de suportar tamanho brilho. Até que viu a caixinha de música de sua avó, onde uma linda bailarina dançava graciosamente no centro. A pequena conta, agora, ocupava o lugar que outrora guardara valiosas jóias, mas que jamais valeriam tanto para a menina como o seu mais novo tesouro.
Ao sair de casa, no dia seguinte, parecia ainda mais distraída do que de costume. Até que, repentinamente, um desconhecido tomou sua mão e pôs nela um pequeno objeto. Sussurrou em seu ouvido palavras que agora seriam para sempre só suas e sumiu, como que envolto por uma leve brisa. Ao sentir o pequeno mundo em suas mãos, sentiu o coração palpitar. Não conseguia acreditar, era tão súbito, tão único, tão seu, aquele momento. Sentiu-se leve o restante do dia, uma leveza estranha, daquelas que, a qualquer momento, podem desaparecer. Mas não importava: para ela, cada conta aumentava um ponto na história da sua vida.
E assim seguiu vivendo, um dia após o outro, uma conta após a outra. Algumas eram grandes, brilhantes, pareciam maiores que o mundo, até. Outras, menores, mas com o brilho parecendo ainda mais intenso, concentrado naquele pequeno universo.Cada conta tinha sua história e sua importância.
Algumas haviam sido presentes de pessoas queridas; outras, desconhecidos a haviam dado até mesmo sem saber. Algumas pareciam surgir quando tudo parecia errado, outras eram pequenos frutos brilhantes do seu esforço.
E, cada vez mais, a caixinha de jóias estava mais cheia de cor, cores estas que pareciam enfeitar também o coração da menina, da moça, da mulher. Mulher que, agora, via o colorido das contas contrastar com o branco de seus cabelos. Tanta vida, tantas contas. Eram tantas que suplicavam para se unirem ainda mais.
Unidas pelo fio da vida, as contas formavam, agora, um colar multicolorido que adornava o pescoço da senhora, que dormia serenamente recostada na cadeira, embalada pela suave melodia que fazia a bailarina dançar.

sábado, 8 de maio de 2010

Espera.

Há muito tempo andava à procura de algo, à espera de algo. O que seria, afinal? Não sabia, apenas sentia aquela angústia de quando se sabe que algo está vindo, ou virá um dia. Uma pessoa, uma lembrança, um cheiro, um gosto, talvez, nem que para adoçar por cinco minutos sua vida, monótona vida. E esperava pacientemente, feito criança que espera o pai que prometeu levá-la para passear. Um copo, dois, três. Palavras perdidas em algumas páginas de um livro que parece não ter fim, as unhas roídas, os cabelos levemente desarrumados, esperando, esperando. Levanta, faz um café forte, a louça por lavar, aquele apartamento-dois-quartos-com-varanda pedindo por uma limpeza, peças de roupas dispostas suavemente nas cadeiras, aquela caixa de bombons com papéis refletindo a luz do sol que entra pela janela como estrelas de celofane. O telefone há muito não toca, as contas acumuladas na mesinha de madeira nobre, a coisa mais nobre daquele ambiente vazio de vida. E a vida dela se esvaindo como a fumaça do incenso que trazia doces recordações do amigo budista da loja de artefatos orientais. Andava desnorteada, esquecida de si, por entre as paredes do que chamava de lar, recanto de sua solidão e de seu desespero, desespero que agora vinha acompanhado de insônia, memórias, uma caixa de cartas antigas e bombons. A poeira parecia se acumular sobre cada canto daquele coração esquecido de emoções, assim como se acumulava nos cantos das paredes do apartamento, cantos agora delicadamente ornamentados por teias finas como as teias que a uniam a seu passado. E, paciente, esperava. O tique-taque do relógio apressado. Remexendo entre as cartas, lendo cada vez mais sobre o que havia sido, vendo, cada vez mais, que a espera era vã, pois nada daquilo iria ser refeito.
Um último raio de sol iluminava, por fim, suas jóias de celofane. As cartas acumulavam-se ao redor dela. Eis que encontrou uma das muitas cartas de amor que fizera. Mais uma das nunca enviadas, o registro escrito da palavra não dita, a prova da pouca coragem, a marca da felicidade perdida. E então, chorou. Chorou por saber que a espera de si mesma seria eterna, pois sempre estaria aguardando algo que não vem, pois era tarde demais.


Nos caminhos tortuosos dessa estrada
Ao andar, me encontrava tão perdida
Eis que, em ti, encontrei não só caminho
Mas, também, um sentido em minha vida.
Pela janela, um papel era lançado. Embalados pelo vento, os versos iam embora.

quinta-feira, 29 de abril de 2010

(his)estória sobre a (lou)cura.

- Ai, mais um dia daqueles
- que dá vontade de mostrar pro mundo o quanto eu sou louca
- cansativos, muito sansativos. Se ao menos as pessoas
- pudessem entender que os monstros estão aqui. Já tentei de tudo para que
- vissem o quanto me esforço, o quanto sofro. Desse jeito, só espero...
- me desespero, aliás. Louca, isso que você é.
- E loucamente espero que algum dia você possa parar com isso. Pode parar com isso?
- Por que? Vontade de não se ver refletida no espelho dos próprios olhos ou apenas
- Orgulho, fere meu orgulho ver você falando assim. Até parece que estou mesmo
- L-O-U-C-A! Olha nesses olhos, vê ou só enxerga?
- Sai daqui, sai daqui. Transtorno bipolar, é o que dizem.
- Quem diz? Os médicos, os colegas, os outros? Tão loucos quanto.
- Mal sabem o quanto gasto com remédios, e prefiro que continuem sem saber.
- Mal sabes tu os monstros que eles guardam dentro daqueles sorrisos plásticos, cabelos macios e dentes impecáveis.
- Monstra, monstra, sai daqui. Componha-se, componha-se.
- Sabe, não sei quem é a mais louca de nós duas.
- Não sou louca. Não sou louca. Não sou louca.
- Já imaginou se ficam sabendo?
- Não há o que saber.
- Estou certa, de novo. Sabe, "aceita tua loucura antes que seja tarde demais".
- Li isso um dia. Besteira.
- Talvez, pra você, seja tarde demais. Não precisa mais aceitar a loucura. Ela já é parte de você, e nada pode ser feito.
- Onde está a porcaria da caixa.
- A caixa com a tarja preta, parece com a que está sobre seus olhos, sobre os olhos deles, sobre os olhos de todos.
- É cura.
- Loucura, eu diria.
- A mulher séria, compenetrada, amável e simpática.
- A mulher dissimulada, fingida, cínica e medrosa.
- Medo de que pensem besteira, que achem que descobriram algo.
- Medo de descobrir as besteiras que pensa.
- Bobagem, tudo isso.
- E nunca falou tão sério na vida.
- Estou louca.
- Estamos loucas.
- Estão loucos.
- Loucura é um estado em que nos encontramos perdidas.
- Não me entrego.
- Não precisa. Ela já te possui.
- Aí grito, meio louca, meio rouca, meu Deus, meu Deus, me salve de mim!

sexta-feira, 16 de abril de 2010

(des)ato.

A vida, ultimamente, está que nem um teatro. Aliás, sempre é assim, eu sei, mas, por esses dias, anda tudo bem mais intenso (e tenso). As cortinas se abrem, a personagem entra, atua, sai, as cortinas fecham. As cortinas se abrem de novo, entra outra personagem, dá seu show, sai, as cortinas fecham. Depois, abrem-se de novo, mais uma personagem entra... E assim, eu, elas, nós vamos seguindo, nessa sucessão de abrir e fechar de cortinas de entrar e sair de personagens, todas eu, mas nenhuma eu plenamente. Partes do todo, cada uma se mostrando na sua hora.
Às vezes, mais de uma entra em cena, às vezes uma quer permanecer por mais tempo, outra não quer aparecer, e assim eu sigo sendo esse misto de todas, guardando uma por uma em mim, partes do que eu sou. Eu só queria, uma vez que fosse, conseguir fazer todas atuarem juntas, em perfeita harmonia, equilibrando o espetáculo, cada uma a seu (e a meu) modo. Mas, talvez, o meu espetáculo completo seja essa sucessão de atos que cada personagem apresenta, fazendo o teatro que eu, aos trancos, tento viver.

domingo, 11 de abril de 2010

11.04.2010

É estranho nossa vida ser um filme que só é visto na íntegra por um espectador. Acho que é porque há coisas que só esse espectador que pode ver, mesmo. Mas, ainda assim, é estranho pensar que toda hora passam por nós vários filmes, e que esses filmes cruzam os nossos, e que os nossos cruzam outros mais. No fim, tudo acaba formando um filme só. E desse grande filme, só a nossa parte é inteiramente nossa.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Subitamente

Ela, sentada em mais um ônibus dos milhões de ônibus do mundo, do universo, vivendo mais um dia daqueles milhões de dias de vida que já foram vividos por outras milhões de pessoas que já viveram, que viviam ou que iriam viver, ainda. Cabeça recostada na janela, ela existia, tentando viver. Será que vivia? Isso sempre a atormentava. Preferia dizer que existia em alguns momentos, vivia em outros, e naquele momento ela apenas existia. Mas ele a fez pensar que, naquele momento, vivia. Ele esperava, como todos fazem. Mas parecia não esperar apenas a condução que o levaria para casa, para a escola, para o trabalho, não, ele parecia esperar algo que o fizesse viver, mudar, ele que parecia esperar mais, bem mais, sabe-se lá de quê ou de quem. E ela o viu, ele, ali, parece que aquele local era realmente o ideal para encontrá-lo: se fosse em outro lugar, nunca o ar aparentemente desinteressado, alheio, sonhador, que seja, teria sido percebido pelos olhos da moça, olhos que agora brilhavam, cheios de vontade de serem notados por aqueles outros olhos que fitavam o infinito. "Vem cá, sobe nesse ônibus, senta aqui ao meu lado", ela quase disse. Desejava que ele subisse naquele mesmo ônibus, seria aquela linha que iria unir as linhas das vidas dos dois? Não sabia, apenas desejava que ele mostrasse a ela que tudo o que se passava por baixo daqueles cabelos castanhos, bagunçados por conta do vento, era verdade, que ele era realmente como ela pensava. Mas ele não ia subir, ela sabia. O garoto e seus cachos iriam ficar ali, esperando algo que não era ela. Teve, então, vontade de descer e dizer "entra na minha vida, nem que por cinco minutos". Sem que ela percebesse, ele já havia feito isso, já era parte dela, mesmo que desse jeito assim, solto, como quem não consegue se encaixar na banalidade que era aquele momento, aquilo tudo, aqueles pensamentos soltos da garota na janela.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Marca

Cabelos brancos, bem branquinhos. Um ar de quem passou pela vida de modo pleno, completo, e hoje assiste a vida alheia, embalada pelas doces lembranças que a acompanham.

- Do...doce. É, é isso que tem escrito sim. "Que seja doce".

Ouviu sussurrarem ao fundo. Jovens, sempre tão curiosos, tão espantados com coisas corriqueiras. Esquecem que ela, hoje uma testemunha de outros tempos, já fora jovem como eles, cheia de sonhos, de desejos, de segredos, de angústias, de tudo. E a maior vontade da jovem de outra época era que sua vida fosse assim, doce.
Seu pai quase desmaiou quando viu. A mãe, mesmo que a contragosto, teve que admitir que estava um charme. Uma frase, assim, no pezinho delicado da filha. "Que seja doce", dizia.
Muitos a indagavam sobre o porquê daquela frase. Mas, ora, tudo havia sido planejado há muito, até mesmo o local não havia sido aleatório. Doce. Havia lido isso em algum lugar, achou tão bonito. Doce. Tantos significados, tantos. Jovem, medo da vida. É que o futuro era incerto demais, misterioso demais. Nem mesmo o futuro dela pertencia a ela, porque ela não sabia ao certo quanto tempo ele duraria. Nunca saberia. Mas tinha certeza de uma coisa: haveria de ser doce.
Doces os caminhos a serem trilhados, as pessoas a serem conhecidas, os obstáculos a serem ultrapassados, as marcas a serem deixadas. Tudo, tudo haveria de ser doce.
E sim, como tudo havia sido doce. Até mesmo os momentos em que parecia impossível encontrar um pouco de docilidade.
Hoje, aquela marca era quase que só uma linha, no meio de tantas outras. Uma linha de ousadia, de esperança, no meio das tantas outras linhas do tempo, marcas da idade.



(Para um amigo)

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

O pássaro

Voar, aquele sempre havia sido o seu sonho. Como se, num bater de asas, tudo pudesse ser resolvido. Tantas vezes sentira esse impulso, uns mais, outros menos intensamente. Mas aquele pássaro engaiolado em seu peito sempre protestava, querendo liberdade, e ela sabia que a única maneira de libertá-lo plenamente era se ela mesma voasse, livre.
Só ela e o céu que outrora pertencera a Ícaro. Seriam suas asas frágeis como as dele? Do alto - quantos eram os andares? - nenhuma dúvida parecia ser capaz de trazer qualquer aflição.
O vento zunia em seus ouvidos, será que ouviria esse som ao voar? Não sabia. O som que ouvia agora era o de seu coração batendo descompassado no peito, acompanhado pelo farfalhar de asas inquieto do pássaro. O pássaro queria sair, as asas batendo, o coração batendo, o coração queria sair, ela queria voar.
Estava decidida como jamais estivera em nenhum outro momento de sua vida. Ela, que tanto queria voar, sentia apenas poucos centímetros de chão a frente de seus pés.
E voou, aterrissando, pálida, em uma foto de jornal do dia seguinte. No céu, um pássaro azul voava, livre.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

(Quase) monólogo.

"Alguns no meio daquela multidão espantada e comovida comentavam, como naquela manhã antiga, que essa menina - ah, essa mulher - precisava sair daqui. Deste planeta que, tão freqüentemente, parece não comportar a sensibilidade."
(Caio F. Abreu)



Deve doer ser sensível assim. Porque você vê tanta coisa, sente tanta coisa.
É intenso, é tudo. É TUDO INTENSO.
E a vida é muito cheia de coisas, de coisas pra ver, de coisas pra fazer, de coisas pra pensar, de coisas pra sentir, de coisas que valem a pena e de coisas que não valem, de pessoas pra conhecer, de amores pra cultivar, de amigos, de tudo. E a gente tem tão pouco tempo. E perde tanto tempo.
Eu fico com um samba do crioulo doido em mim pensando nessas coisas, eu queria ser mais passiva a isso tudo, sei lá, eu queria nem me revoltar muito, não.
Mas tem coisa que vem num turbilhão, e eu me pergunto se um dia vão querer compartilhar desse turbilhão comigo.
Se bem que cada um vê as coisas de um modo diferente, pode ser que nem tenha ninguém não.
Pode ser que cada um tenha as suas coisas e tal. A gente até compartilha, mas nunca inteiramente.
E eu tô mentindo, mentindo legal quando digo que queria ser mais passiva. "Eu gosto é do estrago".
E por mais que eu fique bem agoniada às vezes, ou aperreadinha do juízo, talvez isso seja até bom. Sei lá o que é bom o que não é, só sei que isso deve ser bom. Tomara que seja.
Eu queria compartilhar essas coisas avulsamente, assim, puf, jogar tudo pro mundo. Mas se nem eu aguento tudo que eu tenho pra dizer, acho que o mundo também não aguenta, não.
Se bem que eu falo como se eu tivesse muita coisa pra dizer, e nem é.
Aliás, sei lá se é. Não sei de nada.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Encontro

Caminhava apressada, tantos compromissos, os papéis reunidos na pasta apertada contra o peito, só não mais apertada do que o próprio coração. Ai, tanto por fazer, tinha sempre a impressão de que estava tudo pela metade. A rua movimentada, mas o local que tinha que ir era tão pertinho, decidiu ir andando - ah, se arrependimento matasse...
Não conseguia definir rostos, só passos e mais passos, alguns lentos que a irritavam, alguns rápidos demais que a irritavam mais ainda. Ia como quem não sente a vida, quem não pensa na ida, quem só quer chegar. Sim, chegar, era isso que ela queria até que, ai, não! Papéis espalhados voavam ao seu redor, espalhavam-se pelo chão, a moça também no chão pensava "céus, como sou desastrada!", e era mesmo, se não fosse, não estaria andando tão apressada, tão avoada, teria visto ao menos o buraco no qual prendera o pé, ah, como não vira aquilo? Dez minutos, dez minutos!
Então, olhou para cima, o que está feito, está feito, o jeito é correr mais pra chegar com o mínimo de atraso possível, até que, espere! Ah, ela não lembrava mais nem para onde ia, pois o reflexo do sol naqueles fios de cabelo ruivo a cegavam, mas era uma cegueira na qual ela permaneceria para sempre, se pudesse. Educado, ele a tomou pela mão, ainda a ajudou a arrumar alguns dos papéis teimosos que insistiam em fugir. Perguntou se ela estava bem, e ela quase respondeu "sim, nunca me senti tão bem na vida", mas limitou-se a confirmar com a cabeça, enquanto fingia organizar os papéis. E ele a olhava como quem vê um coração apertado, como se sentisse que aquela pressa toda tinha um motivo a mais, mas, para não parecer intrometido, nada disse, apenas ajudou aquela moça tão encantadoramente desastrada, tão bela, apesar de tão apressada.
Ela teria ficado a vida interia ali, esquecida de tudo o que tinha que fazer. Ele não largaria a mão dela jamais, se fosse dada a ele essa chance.
- Muito obrigada por me ajudar, mas estou com pressa, tenho que ir.
- Ah, por nada, não precisa agradecer.
E então ela foi, sabendo que jamais esqueceria aquela mão firme, mas delicada, e aqueles charmosos cabelos ruivos.
"E pela lei natural dos encontros
eu deixo e recebo um tanto"
Ele cantarolou baixinho.



- Você está atrasada, cinco minutos.
(ah, se você soubesse que ainda nem estou aqui, que acho que jamais estarei aqui, que meu lugar é ao lado do charmoso ruivo que deve estar em alguma rua por aí, e eu talvez jamais o veja novamente...)
- Desculpe, é que houve um contratempo.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

A ponte

Estranho o modo como a olhavam. Uma moça e uma caixa, o que havia de errado? Direito de ir e vir é constitucional, ela pensa. Mas isso não importa, aliás, nesse momento, opiniões alheias pouco importam. O que importa é o que ela tem que fazer. O que ela vai fazer.
Famílias passam por ela, todos tão felizes, aproveitando o último dia de mais um ano em suas vidas. Crianças correm, pessoas se abraçam, aquele conhecido vira, por alguns instantes, um grande amigo. É como se por um dia todos fossem o que deveriam ser o ano inteiro: felizes, unidos. Ela acha tudo aquilo tão superficial. Não que seja desnecessário, mas, em alguns momentos, parece falso demais. Pra onde vai toda essa bondade no resto do ano? Ninguém sabe, ninguém viu.
Mas, tudo bem, isso não importava. Ela continuava a caminhar decidida, até chegar onde queria. Enfim, depois de areia, pedras e pessoas, ela estava só. Ou melhor, quase. Havia ainda um mundo de lembranças, pessoas, cheiros, cores, tudo ali, naquela caixa. Era seu ano, era uma parte dela.
Olhando para o mar, ela pensava: "por que raios estou fazendo isso?". Mas ela sabia, sabia que precisava soltar-se, libertar-se de certas lembranças - boas ou ruins. Estava presa a muito tempo a coisas que, talvez, não fossem necessárias. Por mais que alguns desses momentos tivessem sido bons, mas de nada isso adiantava, agora: eram só lembranças, e o presente mostrava que aquilo tudo fora apenas uma fase, que as pessoas podem enganar-se.
Ela achava o mar tão belo. E, nessa beleza, ela decidiu jogar tudo aquilo, para que o mar levasse para locais desconhecidos todos aqueles restos, restos do que ela havia sido, restos do que ela talvez ainda fosse.
Começou pelas fotos: ah, aquele dia foi tão bom, e aquela festa?, olha, eu sempre achei que ele estava lindo vestido daquele jeito, foi uma surpresa agradável, esse momento eu quero esquecer, dancei a noite toda... Uma a uma ela olhava, momentos eram revividos e, em seguida, a foto seguia para a imensidão azul que bailava diante de seus olhos.
Achou aquele papel de chocolate que há tanto tempo havia guardado - era especial, ora essa! Depois de um tempo percebeu que especiais eram os sentimentos, e eles não eram tão fáceis assim de se obter. Não eram um pedaço de papel colorido que a gente guarda em uma caixinha achando que tem algum significado.
Aqueles bilhetes, ah, os bilhetes! A luz fraca ainda a permitia ler um por um, e eles traziam consigo riso, choro, susto e decepção. Poucas palavras, muitas coisas ditas. Um "sim" ou um "não" podiam significar mais do que uma carta inteira.
Então ela viu que o mar era como a sua vida: as ondas carregavam sal e recordações. Era seu ano ali, flutuando leve na sua frente. Ela estava decidida a mudar. Sabia que livrar-se daqueles objetos não apagaria as lembranças que ela carregava, mas esperava que, ao desfazer-se de algumas coisas, teria um pouco de sua dor e de sua frustração levadas pelo mar.
Agora eram apenas ela, o mar, a lua e um mundo de possibilidades. Ouviu a contagem regressiva ao longe, e os fogos de artifício começaram a iluminar sua solidão. Nunca se sentira tão bem acompanhada, pra falar a verdade. Era só ela e o que ela quisesse, porque, agora, era um recomeço.
Sua essência, a mesma. Suas possibilidades, infinitas. Seus erros, outros. Suas alegrias, intensas. Suas tristezas, profundas. Sua leveza, indescritível.



P.S.: Feliz 2010!