sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

A ponte

Estranho o modo como a olhavam. Uma moça e uma caixa, o que havia de errado? Direito de ir e vir é constitucional, ela pensa. Mas isso não importa, aliás, nesse momento, opiniões alheias pouco importam. O que importa é o que ela tem que fazer. O que ela vai fazer.
Famílias passam por ela, todos tão felizes, aproveitando o último dia de mais um ano em suas vidas. Crianças correm, pessoas se abraçam, aquele conhecido vira, por alguns instantes, um grande amigo. É como se por um dia todos fossem o que deveriam ser o ano inteiro: felizes, unidos. Ela acha tudo aquilo tão superficial. Não que seja desnecessário, mas, em alguns momentos, parece falso demais. Pra onde vai toda essa bondade no resto do ano? Ninguém sabe, ninguém viu.
Mas, tudo bem, isso não importava. Ela continuava a caminhar decidida, até chegar onde queria. Enfim, depois de areia, pedras e pessoas, ela estava só. Ou melhor, quase. Havia ainda um mundo de lembranças, pessoas, cheiros, cores, tudo ali, naquela caixa. Era seu ano, era uma parte dela.
Olhando para o mar, ela pensava: "por que raios estou fazendo isso?". Mas ela sabia, sabia que precisava soltar-se, libertar-se de certas lembranças - boas ou ruins. Estava presa a muito tempo a coisas que, talvez, não fossem necessárias. Por mais que alguns desses momentos tivessem sido bons, mas de nada isso adiantava, agora: eram só lembranças, e o presente mostrava que aquilo tudo fora apenas uma fase, que as pessoas podem enganar-se.
Ela achava o mar tão belo. E, nessa beleza, ela decidiu jogar tudo aquilo, para que o mar levasse para locais desconhecidos todos aqueles restos, restos do que ela havia sido, restos do que ela talvez ainda fosse.
Começou pelas fotos: ah, aquele dia foi tão bom, e aquela festa?, olha, eu sempre achei que ele estava lindo vestido daquele jeito, foi uma surpresa agradável, esse momento eu quero esquecer, dancei a noite toda... Uma a uma ela olhava, momentos eram revividos e, em seguida, a foto seguia para a imensidão azul que bailava diante de seus olhos.
Achou aquele papel de chocolate que há tanto tempo havia guardado - era especial, ora essa! Depois de um tempo percebeu que especiais eram os sentimentos, e eles não eram tão fáceis assim de se obter. Não eram um pedaço de papel colorido que a gente guarda em uma caixinha achando que tem algum significado.
Aqueles bilhetes, ah, os bilhetes! A luz fraca ainda a permitia ler um por um, e eles traziam consigo riso, choro, susto e decepção. Poucas palavras, muitas coisas ditas. Um "sim" ou um "não" podiam significar mais do que uma carta inteira.
Então ela viu que o mar era como a sua vida: as ondas carregavam sal e recordações. Era seu ano ali, flutuando leve na sua frente. Ela estava decidida a mudar. Sabia que livrar-se daqueles objetos não apagaria as lembranças que ela carregava, mas esperava que, ao desfazer-se de algumas coisas, teria um pouco de sua dor e de sua frustração levadas pelo mar.
Agora eram apenas ela, o mar, a lua e um mundo de possibilidades. Ouviu a contagem regressiva ao longe, e os fogos de artifício começaram a iluminar sua solidão. Nunca se sentira tão bem acompanhada, pra falar a verdade. Era só ela e o que ela quisesse, porque, agora, era um recomeço.
Sua essência, a mesma. Suas possibilidades, infinitas. Seus erros, outros. Suas alegrias, intensas. Suas tristezas, profundas. Sua leveza, indescritível.



P.S.: Feliz 2010!

5 comentários:

Leandro disse...

Eu já te pedi em casamento?

marinaCqm disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
marinaCqm disse...

Fechou com chave de ouro.

Texto belíssimo.
Sentimentos mil transbordam.


As minhas linhas de crônicas
ainda me parecem mais um emaranhado de frases - idéias.
Com o tempo, melhora e posto
por lá.

Abraço grande!

Rafael Ayala disse...

Poxa, cadê o comentário que eu tinha deixado por aqui? Oo?

Ou será que eu falei só pelo msn mesmo? hehehehehe

Pois vamos lá!

Eu já te disse que eu gosto do jeito que tu escreve? Não, né? Pois eu gosto.

"Sua essência, a mesma. Suas possibilidades, infinitas.". Eu costumo escrever alguma coisa do tipo, de um eterno processo de construção e desconstrução. E ainda tem um sujeito que diz, não lembro o nome dele, algo do tipo:
"Diante de milhares que eu posso ser, como me contentar em ser um só?".

Eu tinha te dito o caso da bondade no resto do ano não é? Eu tento fazer com que todos os dias do ano sejam agradáveis para todos. Não deixo a bondade, simpatia, ou seja lá o nome disso, apenas para o fim do ano. Deve ser o ano todo, eu penso assim.

Eu acho que eu tenho uma caixa dessas, tal qual a menina. Mas eu a levo no peito, tentando deixar as coisas boas. Sabe o quanto é difícl deixar as coisas ruins de lado? Pois é, mas é preciso um esforço não é mesmo?

Bonito texto!

=]

MAGALHÃES, Vini disse...

É bem por aí onde me sinto.

De certa forma, virar o ano foi lançar a minha caixinha ao mar, ou pelo menos eu gostaria que fosse assim... seria tão mais fácil =D

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Beijo